CPR FÍSICA E CPR FINANCEIRA NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL: ENTENDA O QUE MUDA PARA PRODUTORES E CREDORES

Rhamael Theodorus Yohannes Oliveira Shilva Gomes Villar

Num cenário em que o crédito oficial já não dá conta de financiar o agronegócio, a Cédula de Produto Rural (CPR) voltou ao centro do debate jurídico. O instrumento, criado nos anos 1990, ganhou fôlego com as reformas legislativas recentes, se consolidando como uma ferramenta essencial de financiamento privado no setor rural.

Mas quando o produtor rural entra com pedido de recuperação judicial, surge uma dúvida crucial: como ficam os direitos dos credores que possuem CPRs? A resposta depende do tipo de CPR emitida – física ou financeira – e pode ter impactos diretos sobre a validade das garantias, prazos de pagamento e possibilidade de execução extrajudicial.

Neste artigo, explicamos de forma clara as diferenças entre a CPR Física e a CPR Financeira, os reflexos no processo de recuperação judicial e os cuidados que credores e produtores devem ter.

1. O que é a CPR?

A Cédula de Produto Rural (CPR) é um título de crédito que permite ao produtor ou à cooperativa rural captar recursos de forma antecipada, assumindo o compromisso de, no futuro, entregar produtos agrícolas ou pagar um valor em dinheiro.

Seu objetivo é claro: facilitar o financiamento privado da atividade rural, reduzindo a dependência do crédito oficial. O título pode ser negociado por endosso, o que aumenta sua liquidez, já que permite que o credor original transfira os direitos a outras instituições, inclusive agentes do mercado financeiro.

Modernizações recentes, como o uso da assinatura eletrônica e a inclusão da CPR no ambiente digital do Sistema de Registro de Ativos Financeiros (SRAF), deram maior segurança jurídica ao instrumento. Além disso, leis como a Lei do Agro (Lei 13.986/2020) e a Lei 14.421/2022 permitiram a criação de garantias adicionais, como o Fundo Garantidor Solidário (FGS), que envolve a participação de mais de um devedor e um credor, reforçando a atratividade do título.

2. Modalidades de CPR: Física, Financeira e Verde

Atualmente, a CPR se divide em três modalidades:

CPR Física: O produtor se compromete a entregar fisicamente o produto agrícola (por exemplo, 1.000 sacas de soja) ao credor, em local, data e condições previamente definidos. O pagamento se dá em mercadoria, e não em dinheiro. É comum em operações entre produtores e tradings ou cooperativas.

CPR Financeira

Permite a liquidação financeira do título, com o produtor pagando o valor do produto em dinheiro, corrigido pelo preço de mercado.

É considerada um instrumento de natureza financeira, similar a operações de crédito.

Tem sido a preferida por investidores e bancos, pois permite o uso de instrumentos financeiros mais sofisticados.

CPR Verde

Criada para financiar atividades de reflorestamento, preservação ambiental e serviços ecossistêmicos.

A emissão do título possibilita a captação de recursos com foco na sustentabilidade ambiental, funcionando na prática como uma forma de pagamento por serviços ambientais.

3. Efeitos na Recuperação Judicial: o ponto central da controvérsia

A grande dúvida jurídica está em saber se a CPR, nas suas diferentes modalidades, se submete ao regime da recuperação judicial (Lei nº 11.101/2005).

CPR Física: fora da recuperação

Como a CPR Física exige a entrega de bens, e não o pagamento em dinheiro, ela não se enquadra na definição de “créditos sujeitos à recuperação judicial”, prevista no artigo 49 da LRF. Ainda, dispõe o art. 11, da Lei nº 8.929/94, que não se sujeitarão aos efeitos da recuperação judicial, os créditos e garantias cedulares vinculados à CPR com liquidação física, representativa de operação de troca por insumos (barter), vejamos:

Art. 11. Não se sujeitarão aos efeitos da recuperação judicial os créditos e as garantias cedulares vinculados à CPR com liquidação física, em caso de antecipação parcial ou integral do preço, ou, ainda, representativa de operação de troca por insumos (barter), subsistindo ao credor o direito à restituição de tais bens que se encontrarem em poder do emitente da cédula ou de qualquer terceiro, salvo motivo de caso fortuito ou força maior que comprovadamente impeça o cumprimento parcial ou total da entrega do produto.

Destaca-se que referido texto legal foi introduzido na legislação que trata sobre as Cédulas de Produto Rural (Lei nº 8.929/94), pela Lei nº 14.112/2020, que teve como objetivo alterar as Leis nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005; 10.522, de 19 de julho de 2002; e 8.929, de 22 de agosto de 1994, para atualizar a legislação referente à recuperação judicial, à recuperação extrajudicial e à falência do empresário e da sociedade empresária. Isso significa que:

  • O credor não precisa esperar o plano de recuperação;
  • Pode cobrar a entrega dos produtos normalmente;
  • Pode executar as garantias previstas no título (como penhor agrícola, por exemplo).

Em síntese a CPR Física não entra na recuperação judicial. O credor mantém seus direitos integrais.

CPR Financeira: submetida à recuperação

Já a CPR Financeira possui natureza claramente pecuniária: obriga o produtor a pagar um valor em dinheiro, corrigido de acordo com o preço de mercado do produto. Por isso, ela se enquadra no conceito de dívida sujeita à recuperação judicial.

Na prática, isso quer dizer que:

  • O credor fica sujeito ao plano de recuperação;
  • Não pode cobrar o valor da CPR por vias judiciais ou extrajudiciais, enquanto durar a recuperação;

Precisa aguardar os prazos, condições e eventuais descontos fixados no plano aprovado pelos credores, ou seja, a CPR Financeira entra na recuperação judicial e fica suspensa até o cumprimento do plano.

4. O que diz a jurisprudência?

A jurisprudência ainda está se formando, mas já há decisões relevantes que diferenciam as modalidades da CPR com base na natureza da obrigação assumida – e não apenas no nome dado ao título. 

Necessário destacar ainda que a Extraconcursalidade do crédito em casos análogos foi reconhecida nos autos do recurso de agravo de instrumento nº 1007352-72.2024.8.11.0000, perante a 2ª câmara de direito privado do tribunal de justiça do estado de mato grosso, que assim discorreu:

“(…) Pois bem. 

A ausência da entrega da totalidade do produto soja, local e nos termos designados na Cédula de Produto Rural indicada, evidenciam a probabilidade do direito alegado e confere a agravante o pleno exercício do direito de arresto decorrente da garantia real que possui sobre o produto. 

Com efeito, tratando-se de produto rural, a ser colhido em data específica, nas hipóteses de contrato que preveja a entrega do produto ao credor, o comum é que o depósito se faça ao longo da colheita ou não se faça mais, de modo que a simples mora dos executados, autoriza a presunção de que, nesta safra, não será realizado mais o pagamento, mediante a entrega do produto. 

De outro lado, pela natureza do bem, coisa móvel, evidente o risco de que a produção venha a perecer, podendo ser desviada, subtraída ou mesmo transferida a terceiros, em prejuízo à agravada. 

Ademais, tratam-se os autos, de crédito que tem origem em operação de ‘Barter’, créditos extraconcursais, estando, portanto, expressamente excluídos dos efeitos da recuperação judicial, verbis:

“Art. 11. Não se sujeitarão aos efeitos da recuperação judicial os créditos e as garantias cedulares vinculados à CPR com liquidação física, em caso de antecipação parcial ou integral do preço, ou, ainda, representativa de operação de troca por insumos (barter), subsistindo ao credor o direito à restituição de tais bens que se encontrarem em poder do emitente da cédula ou de qualquer terceiro, salvo motivo de caso fortuito ou força maior que comprovadamente impeça o cumprimento parcial ou total da entrega do produto. (Redação dada pela Lei nº 14.112, de 2020). (…) (RAI Nº 1007352-72.2024.8.11.0000, EM TRÂMITE PERANTE A 2ª CÂMARA DE DIREITO PRIVADO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MATO GROSSO)

No mesmo sentido é o entendimento da Quinta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO – RECUPERAÇÃO JUDICIAL – RECONHECIMENTO DA ESSENCIALIDADE DE BENS E SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO EM FACE À RECUPERANDA – IMPOSSIBILIDADE – CÉDULA DE PRODUTO RURAL – OPERAÇÃO DENOMINADA ‘BARTER’ – EXTRACONCURSALIDADE – ARTIGO 11 DA LEI Nº 8.929/94 – DECISÃO REFORMADA – RECURSO PROVIDO. Quando se trata de uma Cédula de Produto Rural que representa uma operação de troca por insumos (Barter), ela não está sujeita aos efeitos da recuperação judicial, sendo considerada um crédito extraconcursal, conforme o artigo 11 da Lei nº 8.929/1994, com a nova redação dada pela Lei 14.112/20”. (TJMT – Quinta Câmara de Direito Privado – Agravo de Instrumento n. 1010101-62.2024.8.11.0000, Relator: Desembargador José Zuquim Nogueira, j. 09/09/2024, p. 11/09/2024).

A propósito, colaciona-se elucidativo julgado do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás

EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. IMPUGNAÇÃO AO CRÉDITO. CÉDULA DE PRODUTO RURAL. NÃO SUJEIÇÃO AOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. ART. 11 DA LEI 14.112/20020. CRÉDITO EXTRACONCURSAL. SENTENÇA REFORMADA. 1. A Lei nº 11.101/2005, que trata da Falência e Recuperação de Empresa, estabeleceu que o recurso cabível da sentença que julga a impugnação é o Agravo de Instrumento. 2. Os créditos extraconcursais não são afetados pela recuperação judicial, ou seja, os credores não participam do processo de concorrência entre credores e podem prosseguir com suas cobranças e medidas de execução contra o devedor. 3. No caso concreto, a cédula que aparelha a impugnação ao crédito é representativa de troca por insumos (barter), portanto, não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E PROVIDO. (TJGO, PROCESSO CÍVEL E DO TRABALHO -> Recursos -> Agravos – > Agravo de Instrumento 5816996-66.2023.8.09.0019, Rel. Des(a). DESEMBARGADOR MARCUS DA COSTA FERREIRA, 5ª Câmara Cível, julgado em 04/03/2024, DJe de 04/03/2024)

No mesmo sentido é a jurisprudência pacífica do STJ, no sentido de que os créditos garantidos por CPR com liquidação física não se submetem aos efeitos da recuperação judicial, pois os grãos constituem o objeto de comercialização da pessoa jurídica em recuperação judicial, e não os bens necessários ao processo produtivo. Confira-se: 

“PROCESSO CIVIL. AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL E EXECUÇÃO CÍVEL. CÉDULA DE PRODUTO RURAL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. PRODUTO AGRÍCOLA. GRÃOS DE SOJA. INAPLICABILIDADE DA PARTE FINAL DO ART. 49, § 3º, DA LEI 11.101/05. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA EXECUÇÃO CÍVEL PARA PROSSEGUIR COM A DEMANDA AJUIZADA EM FACE DO PRODUTOR RURAL. 1. Os arts. 6º, § 7º-A, combinados com o art. 49, § 3º, parte final, da Lei 11.101/2005, estabelecem, em relação ao credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens, a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a suspensão dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial durante o prazo de blindagem. Isso porque é vedada a venda ou retirada do estabelecimento do devedor os bens de capital ao longo da suspensão das ações e execuções prevista no art. 6º, § 4º, da LFRE. 2. Consoante a jurisprudência do STJ, se determinado bem não puder ser classificado como bem de capital, ao juízo da recuperação não é dado fazer nenhuma inferência quanto à sua essencialidade para fins de aplicação da ressalva contida na parte final do § 3º do art. 49 da Lei 11.101/05. Os grãos cultivados e comercializados (soja) pelo produtor rural – como na hipótese – são o produto final da atividade empresarial por ele desempenhada e, por isso, não atraem a incidência da ressalva prevista na parte final do § 3º do art. 49 da Lei 11.101/2005. 3. Agravo interno não provido”. (AgInt nos EDcl no CC n. 203.085/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, julgado em 1/10/2024, DJe de 4/10/2024).

Ou seja, se a CPR for “financeira disfarçada de física”, ou tiver cláusulas ambíguas que permitam liquidação em dinheiro, há risco de ela ser considerada sujeita à recuperação judicial, o que pode surpreender negativamente o credor.

5. O papel estratégico da redação contratual

Diante desse cenário, a clareza na redação do título é essencial. Se a intenção é emitir uma CPR Física, o contrato deve estabelecer entrega obrigatória do produto, sem cláusulas de liquidação financeira.

Se a CPR for de natureza financeira, o investidor precisa estar ciente de que, em caso de recuperação judicial, o crédito será incluído no plano.

Além disso, é fundamental registrar adequadamente o título, definir garantias compatíveis com o risco assumido e, se possível, utilizar mecanismos como o Fundo Garantidor Solidário (FGS) para diluir o risco de inadimplência.

6. Considerações finais

Num momento em que o Plano Safra cobre apenas cerca de 30% das necessidades de financiamento do setor, estimadas em mais de R$ 1 trilhão por ano, a CPR se torna uma ferramenta essencial de aproximação do agronegócio com o mercado privado e o sistema financeiro nacional.

Contudo, o crescimento das recuperações judiciais de produtores rurais exige atenção redobrada quanto à modalidade da CPR utilizada, sob pena de frustração das expectativas dos credores e comprometimento da saúde financeira das operações.