Fraude À Execução No Agronegócio: Conceito, Configuração, Nulidade Do Negócio Jurídico E Consequências Legais

INTRODUÇÃO

    O agronegócio, com seu intenso fluxo de recursos e contratos de financiamento, se faz um dos pilares de maior prestígio perante à economia brasileira. Essa complexidade financeira, no entanto, também é capaz de ocasionar litígios e dívidas para produtores rurais.

    Nessa seara, quando essas disputas chegam à Justiça, como em processos de cobrança fiscal, bancárias, relacionadas compra e venda de insumos ou operações barter (relação de troca, insumos x grãos), alguns buscam caminhos obscuros para tentar proteger seus bens, muitas vezes recorrendo à fraude à execução. Essa prática, ilegal e de sérias consequências, tem como objetivo principal impedir que o credor consiga receber o que lhe é devido, geralmente através da transferência de bens para terceiros, como filhos, cônjuges, parentes próximos ou amigos.

    Com base em tal cenário, se buscou com o presente artigo jurídico, elaborar explicação, de forma clara e acessível, do que é a fraude à execução, como ela se caracteriza, quais são suas implicações legais e, principalmente, os efeitos jurídicos da anulação de negócios jurídicos simulados, com foco na realidade do setor agrícola.

    CARACTERÍSTICAS DA FRAUDE À EXECUÇÃO

      A fraude à execução ocorre quando um devedor, sabendo que há um processo judicial de cobrança contra ele (uma “execução”), se desfaz de seus bens (vendendo, doando ou escondendo-os) para evitar que esses ativos sejam usados para satisfação da dívida. Em outras palavras, o devedor tenta enganar a Justiça e o credor, a fim de não pagar o que deve.

      Para o Código de Processo Civil (CPC), em seu art. 792, a lei é clara, podendo os atos de disposição ou oneração de bens serem considerados ineficazes (sem validade) em relação ao credor (o exequente) quando: 

      • Houver uma ação judicial sobre o bem registrada em cartório.
      • No momento da venda ou transferência, já existia um processo judicial contra o devedor, e essa ação era capaz de levá-lo à insolvência (ou seja, de deixá-lo sem condições de pagar suas dívidas).

      Isso significa que, mesmo que uma venda ou doação pareça legal no papel, ela pode ser considerada inválida para o credor se for provada a intenção de fraude à execução.

      BREVE DISTINÇÃO ENTRE FRAUDE À EXECUÇÃO E FRAUDE CONTRA CREDORES

        Imperioso se esclarecer, por oportuno, a diferenciação entre a configuração de fraude contra credores e fraude à execução, compreendendo ambos, em síntese, em atos de disposição de bens ou direitos em prejuízo de credores, contendo, no entanto, a seguinte distinção básica:

        • “A fraude contra credores pressupõe sempre um devedor em estado de insolvência e ocorre antes que os credores tenham ingressado em juízo para cobrar seus créditos; é causa de anulação do ato de disposição praticado pelo devedor, nos moldes do Código Civil (arts. 158 a 165); depende de sentença em ação própria (idem, art. 161); 
        • A fraude de execução não depende, necessariamente, do estado de insolvência do devedor e só ocorre no curso de ação judicial contra o alienante; é causa de ineficácia da alienação, nos termos do Código de Processo Civil atual (arts. 790 e 792); opera independentemente de ação anulatória ou declaratória. Pressupõe alienação voluntária praticada pelo devedor, de sorte que não se pode ver fraude à execução nas transferências forçadas realizadas em juízo.” 

        COMPROVAÇÃO DA FRAUDE À EXECUÇÃO NO PODER JUDICIÁRIO

          Para que a fraude à execução seja reconhecida pela Justiça, alguns pontos essenciais precisam ser observados, concordante previsão do art. 792 do Código de Processo Civil aliado ao entendimento jurisprudencial de regência:

          • Existência de Ação Judicial em Andamento: É fundamental que já haja um processo judicial de cobrança em curso contra o devedor. Isso inclui desde execuções fiscais (dívidas com o governo) e bancárias até outras cobranças judiciais de valores significativos. A ação em questão precisa ter o potencial de levar o devedor à insolvência.
          • Alienação de Bens Após o Início da Ação: A transferência de patrimônio (venda, doação, etc.) que ocorre depois que o processo judicial foi iniciado é um forte indicativo de fraude. Essa suspeita é ainda maior quando o bem transferido é de grande valor e representa a maior parte do patrimônio do devedor.
          • Má-fé do Terceiro Adquirente (Comprador): A Súmula nº 375 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabelece um critério importante: “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente.”

          Isso significa que, se não havia um registro de penhora do bem quando ele foi transferido, a fraude ainda pode ser reconhecida se for provado que o comprador sabia da existência da ação judicial contra o vendedor. Um exemplo claro disso são as transações realizadas entre parentes próximos (filhos, cônjuges, irmãos), que muitas vezes têm pleno conhecimento da situação financeira e das dívidas do devedor.

          DA NULIDADE DO NEGÓCIO JUDÍCO FRAUDULENTO: LEGISLAÇÃO CONTRA À SIMULAÇÃO

            O Código Civil brasileiro, em seu art. 158, é contundente ao tratar de negócios jurídicos realizados para fraudar credores, in verbis:

            “São nulos os negócios jurídicos simulados, mas subsistirão os que se dissimularam, se válidos forem na substância e na forma.”

            A lei visa combater a simulação, que é a criação de uma aparência de legalidade para um ato que, na verdade, esconde uma intenção ilícita. O objetivo é proteger o direito do credor.

            Quando, por exemplo, um produtor rural transfere sua fazenda, tratores ou gado para o nome de um filho ou cônjuge, sem que haja um pagamento real (ou com um valor muito abaixo do mercado), a Justiça pode declarar essa venda ou doação como nula. Isso significa que, para o credor, é como se o bem nunca tivesse saído da propriedade do devedor, permitindo que ele seja penhorado para quitar a dívida.

            Importante ressaltar que essa anulação pode ocorrer no próprio processo de execução, sem a necessidade de uma ação judicial separada, facilitando a recuperação do crédito.

            CIRCUNSTÂNCIAS ROTINEIRAS DE CONFIGURAÇÃO DE FRAUDE À EXECUÇÃO NO AGRONEGÓCIO

              • Transferência de Fazenda ou Propriedade Rural: Muitos produtores, ao se sentirem ameaçados por dívidas e penhoras, “doam” ou “vendem” suas terras a filhos, cônjuges ou outros parentes, com o registro em cartório. No entanto, se for provada a intenção de enganar os credores, a propriedade ainda pode ser considerada como pertencente ao devedor.
              • Registro de Maquinário e Veículos em Nome de Terceiros: Outra tática comum é o uso de “laranjas”. Tratores, colheitadeiras, caminhões e até contas bancárias são registrados em nome de terceiros, criando uma falsa impressão de legalidade. Contudo, se esses atos forem comprovadamente fraudulentos, também serão anulados.

              Consequências Legais da Fraude à Execução

                Uma vez que a fraude à execução é reconhecida pelo Poder Judiciário, as consequências para o devedor e para o terceiro envolvido podem ser severas:

                • Penhora do Bem: O bem transferido, mesmo que esteja em nome de outra pessoa, pode ser penhorado para pagar a dívida.
                • Invalidação do Negócio Jurídico: O ato de transferência (venda, doação) é considerado nulo, como se nunca tivesse acontecido para fins da execução.
                • Multa por Má-fé: O devedor e o terceiro que colaboraram na fraude podem ser multados por litigância de má-fé e/ou ato atentatório a dignidade da justiça, uma penalidade por agir de forma desleal ou temerária no processo judicial, podendo ter de arcar com até 20% do valor atribuído à causa a título de multa, nos termos do art. 80 c/c art. 77, §§, ambos do Código de Processo Civil.
                • Desconsideração da Personalidade Jurídica: Em alguns casos, excepcionalmente, a Justiça pode determinar que os bens dos sócios, pessoas físicas, respondam pelo débito exequendo, notadamente quando há confusão patrimonial entre a pessoa física e jurídica, o que configura fraude à execução.
                • Restrições Financeiras: A prática de fraude pode levar à restrição de acesso a crédito rural, convênios, subsídios públicos e financiamentos, prejudicando severamente a continuidade das atividades do produtor.

                Para que não restem dúvidas acerca dos consectários legais inerentes à pratica de fraude à execução, eis o entendimento adotado pelos Egrégios Tribunais de Justiça em casos de referida natureza:

                APELAÇÃO CÍVEL Nº 5564591-03.2020.8.09.0129   APELANTE: ANA CLÁUDIA MARTINS VIEIRA APELADA:  CARGILL AGRÍCOLA S/A RELATOR:  Juiz Substituto em Segundo Grau A. R. LINHARES CAMARGO CÂMARA:   4ª CÍVEL     EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. PENHORA PARCIAL DE LOTE DE TERRAS. INTIMAÇÃO DE AMBOS OS PROPRIETÁRIOS. AÇÃO DE EMBARGOS DE TERCEIRO. FRAUDE À EXECUÇÃO CONFIGURADA. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS. 1- ?O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente (Súmula 375 do STJ). 2- Hipótese em que a autora apelante propôs a ação de embargo de terceiro pretendendo desonerar a penhora havida sobre 50% do lote de terras pertencente a ela e ao seu cunhado executado. 3- Todavia, encontra-se caracterizada a fraude à execução quando, embora ausente a averbação da ação executiva na matrícula do imóvel, se encontra comprovado que o terceiro adquirente (apelante) tinha sido intimado da penhora tendo pleno conhecimento de demanda capaz de levar o alienante à insolvência, sobretudo por se tratar de parentes próximos (cunhados), devendo ser mantida a sentença que julgou improcedente os embargos de terceiros. 4- Ademais, a apelante também deixou de comunicar sua intenção de compra expressamente nos autos do processo principal e de depositar o respectivo valor em juízo (art. 843, § 1º, do Código de Processo Civil) bem como não trouxe aos autos nenhum recibo de pagamento ou outra documentação comprobatória da licitude do negócio de compra e venda do imóvel penhorado. 5- Ausentes os requisitos elencados no art. 80 do CPC, não há falar-se em punição das partes. 6- Assim, deve ser excluída a condenação da parte autora recorrente nas respectivas penas. 7- Ausentes os pressupostos elencados no AgInt nos EAREsp 762.075/MT, deixa-se de fixar a verba honorária recursal (art. 85, § 11, do CPC). APELO PARCIALMENTE PROVIDO. (Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, 5564591-03.2020.8.09.0129, ADRIANO ROBERTO LINHARES CAMARGO, 4ª Câmara Cível, julgado em 25/08/2023 13:51:16).


                EMENTA: APELAÇÃO. EMBARGOS DE TERCEIROS. PROPRIEDADE. PENHORA. ALIENAÇÃO DE IMÓVEL APÓS A INTIMAÇÃO. VENDA FAMILIAR. MA-FÉ. BEM DE FAMILIA NÃO CONFIGURADO. Conforme entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça, considera-se fraude à execução a transferência de bens entre familiares quando, ao tempo da alienação, tramitava contra o devedor alienante demanda capaz de reduzi-lo à insolvência. Não há terceiro de boa-fé quando os elementos dos autos indicam haver o devedor transferido, de má-fé, patrimônio aos seus filhos. Conforme art.1º da Lei nº 8.009/90, para configurar a impenhorabilidade do bem de família, é necessário ser proprietário e residir no imóvel.  (TJMG –  Apelação Cível  1.0000.24.489456-4/001, Relator(a): Des.(a) Marco Aurélio Ferrara Marcolino , 13ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 20/03/2025, publicação da súmula em 24/03/2025).


                EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – EMBARGOS DO DEVEDOR – IMPENHORABILIDADE DA PEQUENA PROPRIEDADE RURAL – NÃO CARACTERIZAÇÃO – FRAUDE À EXECUÇÃO – CONFIGURAÇÃO – ATO ATENTATÓRIO À DIGNIDADE DA JUSTIÇA – MULTA – POSSIBILIDADE. – Tendo em visa a alienação das terras até a redução da área em 19,86ha, depois de proposta a ação executiva, resta claro que o embargante/apelante deu causa à impenhorabilidade do imóvel, não ensejando a proteção constitucional sobre a “pequena propriedade rural”. – A alienação das glebas de terras, após a averbação de ação de execução, caracteriza fraude à execução, nos termos do §4º, do art. 828 do CPC/15, qual seja: “presume-se em fraude à execução a alienação ou a oneração de bens efetuada após a averbação”, a qual, por sua vez, constitui hipótese de ato atentatório à dignidade da justiça, segundo dispõe o art. 774, I e parágrafo único do CPC/15.  (TJMG –  Apelação Cível  1.0042.16.000341-6/002, Relator(a): Des.(a) Sérgio André da Fonseca Xavier , 18ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 14/08/2018, publicação da súmula em 17/08/2018).


                EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA – PENHORA DE IMÓVEL – INTIMAÇÃO DO CONJUGE – DESNECESSIDADE – ALEGACAO DE IMPENHORABILIDADE DE BEM – FRAUDE A EXECUCAO VERIFICADA – INOCORRENCIA – DIVERGÊNCIA AVALIAÇÃO DO IMOVEL – INFIMA – NOVA AVALIAÇÃO – DESNECESSIDADE. 1. A intimação do cônjuge do executado acerca da penhora prevista no art.655, §2º do CPC, visa garantir ao cônjuge a possibilidade de defesa de sua meação. Havendo mais de um devedor, penhorados bens do outro devedor, dispensável e inócua a intimação do cônjuge deste último. 2. Verificada a ocorrência de fraude à execução, mediante a contratação de Cédula de Credito rural por parte dos devedores não há o que se falar em impenhorabilidade do bem dado em garantia. 3. Considerando que a diferença entre a avaliação feita pela Oficial de Justiça e aquela contratada pelo devedor é ínfima não há o que se falar em nova avaliação do bem penhorado.  (TJMG –  Agravo de Instrumento-Cv  1.0707.10.009043-0/004, Relator(a): Des.(a) Wanderley Paiva , 11ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 24/06/2015, publicação da súmula em 30/06/2015).

                A IMPORTÂNCIA DA BOA-FÉ E DA TRANSPARÊNCIA NO AGRONEGÓCIO

                  O agronegócio é um setor que depende fundamentalmente da confiança e da segurança jurídica. Isto porque, a adoção de práticas como simulações, ocultação de patrimônio e fraudes não apenas é ilegal, mas também pode manchar a reputação do produtor rural, resultando na perda de contratos, dificuldades em obter financiamentos e na desconfiança de parceiros comerciais, requisitos essenciais para o fiel desenvolvimento da atividade econômica do agricultor, ou produtor rural em sentido amplo.

                  Diante de dificuldades financeiras, a recomendação é sempre buscar negociações transparentes e honestas com os credores. Existem soluções legais e legítimas para renegociar dívidas, como a recuperação judicial, parcelamentos (inclusive judicial, vide art. 916 do CPC), além de acordos extrajudiciais, que protegem o produtor e a integridade de seu patrimônio de forma ética e legal.

                  Leia também: Novo Marco das Garantias: O Que Muda na Prática e Por que o Agro Precisa se Ajustar Já

                  CONCLUSÕES 

                    A fraude à execução é uma conduta severamente repreendida pelo sistema jurídico brasileiro, pois atenta diretamente contra a justiça e os direitos dos credores. No agronegócio, apesar de sua ocorrência, o Poder Judiciário possui as ferramentas e o conhecimento necessários para identificar e anular esses atos ilícitos, garantindo que as execuções judiciais sejam eficazes.

                    O art. 792 do Código de Processo Civil, o art. 158 do Código Civil e a Súmula nº 375 do STJ formam a base legal que assegura a punição de tais condutas e a proteção da parte prejudicada. A postura mais sensata e segura para qualquer produtor rural é sempre agir com transparência, responsabilidade patrimonial e boa-fé, buscando soluções legais para seus desafios financeiros.

                    REFERÊNCIAS:

                    BRASIL. Código de Processo Civil (2015). Código de Processo Civil Brasileiro. Brasília, DF: Senado, 2015.

                    BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez.

                    Santos, Ernane Fidélis D. Manual de Direito Processual Civil v. 2 , 16ª edição. Disponível em: Minha Biblioteca, (16ª edição). Editora Saraiva, 2017.

                    Jr., Humberto T. Curso de Direito Processual Civil – Vol. 3. Disponível em: Minha Biblioteca, 54ª edição. Grupo GEN, 2020.

                    Autor: DR. KAIRO QUEIROZ DE SOUZA 

                    Advogado: OAB/GO 75.752