Novo Marco das Garantias: O Que Muda na Prática e Por que o Agro Precisa se Ajustar Já

Imagine estar diante de um contrato com diversas cláusulas e garantias e pareceres de crédito e jurídicos positivos. Tudo parece seguro — até que a inadimplência chega. E é só nesse momento que se revela a verdade: a garantia nunca garantiu nada. Ela estava ali, bonita no papel, mas inaplicável na prática.

A boa notícia é que a Lei 14.711/2023 veio justamente para tentar mudar essa realidade. A má? Nem todo mundo entendeu o que, de fato, mudou. 

A lei traz uma série de avanços. Destacam-se: a possibilidade de execução extrajudicial da hipoteca, o fortalecimento da alienação fiduciária sucessiva, a criação da figura do gestor de garantias, e a centralização eletrônica de registros, o que promete mais eficiência e menos dispersão documental. No papel, é uma revolução. Na prática, o desafio é transformar esses instrumentos em rotina operacional. 

Veja o que mudou, por que faz diferença no agro e como aplicar essas mudanças com segurança jurídica e inteligência operacional.

1. Hipoteca Executável em Cartório

A grande virada da Lei 14.711/2023 está na possibilidade de execução extrajudicial da hipoteca. Antes, ela era considerada a “prima pobre” das garantias reais: robusta no papel, mas com liquidez baixa e execução lenta e custosa, por depender exclusivamente do Judiciário.

Agora, desde que haja cláusula expressa no contrato, a hipoteca pode ser cobrada diretamente em cartório. A formalização exige alguns cuidados: escritura pública com cláusula destacada, registro regular, notificação válida ao devedor e cumprimento das demais exigências legais. A exigência de clareza e aviso prévio ao devedor reforça o papel de um contrato bem estruturado.

Na prática, isso representa um divisor de águas: a hipoteca pode se tornar uma alternativa viável e eficiente, sobretudo para bens que não podem ser alienados fiduciariamente — como imóveis rurais maiores que superem o limite de área previsto, ou com restrições ambientais.

Isso pode transformar a percepção do mercado sobre seu uso. Você já revisou seus contratos para incluir essa cláusula? Ainda está oferecendo crédito com garantia que depende do Judiciário? 

✅ Por que isso importa: o credor pode realizar a garantia fora do Judiciário, nos moldes do que já ocorre com a alienação fiduciária.

⚠️ Atenção prática: a cláusula de execução extrajudicial deve constar expressamente e por escritura pública ou instrumento particular com firma reconhecida.

2. Alienação Fiduciária Sucessiva 

Outro ponto é a possibilidade de múltiplas alienações fiduciárias sobre o mesmo imóvel. Antes, havia insegurança sobre a possibilidade de alienações fiduciárias sucessivas (uma após a outra), o que limitava a utilização do mesmo bem em diferentes operações. Agora, a lei autoriza expressamente a alienação fiduciária sucessiva, desde que respeitada a ordem de registro. 

No setor do agronegócio, em que um mesmo imóvel rural pode estar comprometido em várias operações (CPRs, cédulas bancárias, barter, arrendamentos, etc.), essa inovação permite um melhor aproveitamento dos ativos. Porém, ela exige controle rigoroso sobre os registros, sob pena de o credor pensar que tem uma garantia “preferencial”, quando na verdade ocupa o “fim da fila”.

E aqui entra talvez o maior desafio prático: a organização jurídica das garantias. A lei avança, mas quem não adaptar seus fluxos internos, sistemas e cultura contratual continuará perdendo garantias por falhas banais — ausência de anuência do cônjuge, dados divergentes na matrícula, termos assinados sem firma reconhecida, falta de averbação tempestiva. 

A gestão das garantias precisa deixar de ser promessa de compliance e virar prática diária: contratos bem-feitos, checklist jurídico-operacional, registros em dia e análise de risco real.

✅ Por que isso importa: amplia a capacidade de alavancagem com o mesmo bem, importante no agro, onde há safras em sobreposição ou imóveis com múltiplos financiamentos.
⚠️ Atenção prática: é essencial um controle rigoroso do registro e clareza contratual sobre a ordem de preferência entre os credores.

3. Fortalecimento da CPR com Alienação Fiduciária de Bens Imóveis

No caso da alienação fiduciária de bens imóveis, a lei reafirma seu protagonismo como modelo preferencial de garantia executável. Mas agora ela ganha musculatura ao ser integrada diretamente a instrumentos como a Cédula de Produto Rural (CPR). Com isso, a CPR, que já era uma ferramenta central nas operações de financiamento agrícola, passa a contar com a força de uma garantia fiduciária sobre imóveis — algo que antes era incomum ou operacionalmente arriscado. 

Essa união entre título de crédito e garantia real reforça a atratividade das CPRs para o mercado financeiro, ampliando o poder de lastro desses títulos, especialmente relevante em operações de Barter e antecipação de crédito.

O efeito prático disso é mais segurança para quem financia o produtor rural — inclusive securitizadoras, fundos e revendas. 

Mas atenção: a integração entre a CPR e a garantia fiduciária exige uma modelagem jurídica muito bem feita, sob pena de invalidar a própria garantia.

✅ Por que isso importa: a CPR se torna mais robusta com garantias reais fortes e mais facilmente executáveis.

⚠️ Atenção prática: cuidado com as formalidades da alienação fiduciária de imóvel: registro, cláusulas claras, vencimento antecipado e certidões atualizadas.

4. Agente de Garantias e Registro Centralizado

Com a entrada em vigor da Lei 14.711/2023, o mercado de garantias ganha um novo personagem com papel central: o agente de garantias. Trata-se de uma figura legalmente reconhecida que atua como administrador fiduciário das garantias reais prestadas em operações de crédito, podendo representar múltiplos credores, inclusive em execuções extrajudiciais.

Na prática, isso responde a uma demanda antiga do mercado: facilitar a estruturação de operações com vários credores — como consórcios, fundos e cooperativas — sem exigir a constituição de garantias em nome de cada um, o que gerava custo e insegurança. Com o agente, a garantia é prestada a uma só entidade, que a administra com poder legal de atuação.

Esse modelo só é possível graças à integração com infraestruturas de registro e depósito centralizado de garantias, que têm sido impulsionadas pela política regulatória do Banco Central. Empresas como CERC (Central de Recebíveis) e B3 – Câmara de Ativos foram autorizadas a operar como entidades registradoras, viabilizando o registro eletrônico e o depósito de ativos e garantias, com alto grau de segurança e rastreabilidade.

Essas plataformas tornaram-se essenciais para a formalização das garantias em operações envolvendo CPRs, recebíveis, alienações fiduciárias e hipotecas, principalmente no agro. 

Contudo, acessar essas infraestruturas exige capacidade técnica e conformidade regulatória, incluindo certificações e integração com sistemas de mensageria padronizados. Muitos players do agro ainda não estão preparados para isso. 

Essa nova era de transparência, com a centralização eletrônica de registros de garantias nas entidades regulatórias do Banco Central, permite-se que consulte, em tempo real, todas as garantias devidamente registradas no Banco Central, evitando sobreposição de garantias e fraudes estruturadas. Para o agronegócio, isso é ouro. 

Mas será que o credor está usando esse sistema de forma proativa, como instrumento de análise prévia de risco?

Para quem atua no crédito de insumos, ter acesso instantâneo a essas informações, pode fazer a diferença entre fechar ou travar uma operação.

 ✅ Por que isso importa: O registro nas entidades autorizadas pelo Banco Central, garante segurança jurídica, transparência e agilidade ideal para estruturas complexas (Barter, FIDCs, Fundos Agro, operações pulverizadas).

⚠️ Atenção prática: o agente precisa ter atribuições claras por contrato, atuação coordenada com a estrutura de crédito e esteja habilitado para operar junto às registradoras.    

Leia também: PRORROGAÇÃO DE PENHOR       

5. Renúncia à Impenhorabilidade do Bem de Família

Outro ponto interessante é que a lei passa a permitir, de forma expressa, que o devedor pessoa física renuncie à proteção do bem de família quando este for oferecido como garantia. A renúncia, porém, deve ser destacada, clara e formalizada por escritura pública.

Isso pode revolucionar as operações com pequenos e médios produtores, que até hoje viam boa parte de seu patrimônio blindado, mesmo quando voluntariamente ofertado como lastro.

Essa mudança exige, mais do que nunca, transparência, ética contratual e acompanhamento jurídico rigoroso, para que não haja abusos nem nulidades futuras.

✅ Por que isso importa: aumenta o poder de garantia nos contratos com pessoa física — por exemplo, produtores rurais.

⚠️ Atenção prática: a cláusula deve ser destacada, clara e feita com pleno consentimento e ciência das consequências.

6. Conclusão: Garantia Boa é Garantia Registrada e Executável

O Novo Marco Legal das Garantias não é apenas um conjunto de dispositivos técnicos — é um verdadeiro convite à profissionalização da concessão de crédito. Especialmente no agronegócio, onde os valores são altos, os riscos pulverizados e as garantias muitas vezes mal formalizadas, entender e aplicar essas mudanças com inteligência jurídica não é um luxo. É sobrevivência.

A execução extrajudicial da hipoteca, a possibilidade de alienações fiduciárias sucessivas, o agente de garantias e os registros centralizados são ferramentas que, quando bem estruturadas, retiram a operação do papel e a colocam na realidade do crédito performático e recuperável.

Mas a lei, por si só, não resolve. Ela entrega os instrumentos, mas cabe aos operadores — jurídicos, financeiros e empresariais — decidirem como e se irão usá-los. E essa é a pergunta que fica: as garantias da sua empresa estão atualizadas para esse novo paradigma — ou ainda estão presas a modelos jurídicos que já caducaram no papel e na prática? 

Garantias não podem ser mais um item protocolar na esteira de contratos. Devem ser tratadas como o que são: a única linha que separa o crédito do prejuízo.

O momento exige precisão técnica e visão estratégica. E quem souber fazer isso antes — com respaldo jurídico e domínio das ferramentas certas — estará não só mais protegido, mas também mais competitivo.

7. Referências

BONDIOLI, Luis Guilherme Aidar; CLÁPIS, Alexandre Laizo. Marco Legal das Garantias: alienação fiduciária e hipoteca. 1 ed. São Paulo: Saraiva Jus, 2025.

GOMES, Washington de Barros Monteiro. Curso de Direito Civil – Contratos. 43. ed. São Paulo: Saraiva, 2023.

Por: Karoline Pereira Miranda de Melo[1]


[1] Advogada, Administradora e Especialista em Crédito, Contratos e Garantias no Agronegócio, com mais de 20 anos de experiência corporativa nas áreas de Crédito e Jurídico em revendas de insumos agropecuários. Pós-graduada em Direito Corporativo e Compliance. Atua como consultora em estruturação e implementação de Políticas de Crédito e estratégias jurídicas aplicadas ao setor. Experiência consolidada em Advocacia 4.0, com foco em inovação, automação de rotinas jurídicas, estruturação de fluxos e indicadores, e integração com práticas de controladoria jurídica, promovendo eficiência, segurança e inteligência na tomada de decisões jurídicas e empresariais. Membro da Comissão da Defesa da Pessoa com Deficiência da OAB/MT.