Produto da lavoura não é considerado bem de capital essencial, não permanecendo na posse do devedor.
As relações de crédito no agronegócio são idealizadas para fomentar a produção, gerar riquezas e resultados para os envolvidos na operação, o credor e o produtor. Uma vez performada, a relação de crédito quase sempre alcança esses objetivos.
Entretanto, a conta da inadimplência nas operações de crédito no Agronegócio tem se tornado relevante e crescente, ano após ano, fator que encarece o crédito, desencoraja o investidor e gera insegurança jurídica e econômica.
O crescente número de recuperações judiciais de produtores rurais lamentavelmente contribui negativamente para esse cenário de incertezas no recebimento do crédito, principalmente devido a interpretações distorcidas desse relevante instrumento de preservação da empresa, que não raramente tem sido aplicado indiscriminadamente para justificar o descumprimento generalizado das obrigações contratuais, tornando frágeis garantias até a há pouco tempo consolidadas no ordenamento jurídico.
Exemplo disso, não é incomum deparar-se com decisões, principalmente nas instâncias inferiores onde tramitam essas recuperações, que mesmo diante de uma operação garantida por meio de alienação fiduciária em garantia, tem seu titular exposto a toda ordem de riscos, ficando impedido de consolidar sua garantia em propriedade, mesmo diante do inadimplemento, em razão da declaração de essencialidade do bem objeto de alienação fiduciária (Artigo 49, § 3º, parte final, da LRF – 11.101/2005).
Outro exemplo de garantia até há pouco inabalável, era o penhor de grãos outorgado em Cédula de Produto Rural. Esse importante instrumento de crédito foi concebido para dar capilaridade e agilidade nas relações de crédito do agronegócio. Deveras, o penhor de safra, concebido pelos Players do agronegócio como instrumento que transmitia ao credor a propriedade sobre o grão, não se viu capaz de resistir aos processos recuperacionais, sendo grande o número de decisões judiciais que determinaram a devolução de grãos ao acervo da empresa ou produtor em recuperação, em prejuízo daquele que detinha a titularidade da garantia pignoratícia.
Diante desse cenário de riscos, os instrumentos de crédito passaram a ter uma importância decisiva no negócio dos fomentadores, razão pela qual a gestão eficiente dessas operações, materializada num documento robusto, pode fazer a diferença na hora de receber a conta.
Exemplo disso, em recente decisão nos autos do Agravo de Instrumento nº 1014072-31.2019.8.11.0000, o TJMT entendeu que houve a conversão da garantia de penhor em alienação fiduciária em garantia, decorrida expressamente de cláusula prevista em CPR. Assim, sendo objeto de alienação fiduciária em garantia, o crédito não deve ser alcançado pelos efeitos da recuperação judicial.
Somente essa possibilidade já representa grande avanço no ordenamento jurídico aplicável às relações de crédito do agronegócio, uma vez que afasta o risco do credor de ver seu crédito sofrer deságio de até 80%, como se tem visto em várias recuperações judiciais no País.
Mas outra consequência muito relevante emerge dessa possibilidade, pois o entendimento predominante e também referendado no mesmo acórdão, é o de que o grão não consiste em bem de capital essencial ao processo produtivo do empresário, estando, portanto, fora da exceção prevista no § 3º, parte final, do Artigo 49, da LRF. Tal dispositivo, lembremos, permite a manutenção na posse do devedor dos bens de capital essenciais à continuidade do negócio, mesmo em casos como a alienação fiduciária, durante o chamado stay period (180 dias).
No referido acórdão, destacou-se que “estão sujeitos à Recuperação Judicial todos os créditos existentes na data do pedido, exceto aqueles relativos a credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, casos em que seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais”.
Salientou ainda o acórdão que, “nas CPRs sub judice, constou no título que, se constatada pelo sistema GIRA (Gestão Integrada de Recebíveis do Agronegócio) a efetiva existência dos grãos dados em penhor após a fase de granação, passando a ter expressa conversão do penhor em garantia de alienação fiduciária dos bens anteriormente dados em penhor e ainda sendo constatado pelo referido laudo que a produtividade da lavoura será menor que o quantitativo de grãos prometido pela CPR, bem como nos demais casos de vencimento antecipado os grãos passarão a ser objeto de garantia da obrigação ali estabelecida pelo instituto da alienação fiduciária em garantia nos termos do art. 1.361 do CC, transmutando a natureza da garantia por força desta cláusula em não mais pignoratícia, mas efetivamente transferência da propriedade fiduciária do bem fungível que passou a existir. Como visto, as CPRs foram gravadas com cláusula de alienação fiduciária em garantia.” (destacamos)
No tocante ao enquadramento do grão como bem essencial, esclareceu o acordão que, “Apesar dele estar na posse dos agravados, cuida-se de bem consumível, o que inviabiliza plenamente denominá-lo como sendo de capital, pois ao término do stay period deverá ser restituído ao credor fiduciário, o que se revela impossível, já que commodities constituem ativos destinados à circulação, ou seja, quando comercializados esvaziam a própria garantia fiduciária, que não poderá ser devolvida ao final do stay period. Assim, por não se inserir como bem de capital, o juízo recuperacional não pode determinar a restituição à recuperanda”.
Bem da verdade, o não enquadramento do grão como bem de capital essencial já é coroado pelo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, a exemplo do acórdão 153.473 – PR (2017/0179976-7), no qual o Minsitro Marco Aurélio Bellizze em seu voto, destacou que:
“Nem sequer em tese, os referidos bens (grãos de milho e soja), representados nas CRPs (que foram cedidas fiduciariamente), poderiam ser concebidos como “bem de capital, para efeito do disposto no § 3º, parte final, do art. 49 da LRF, ao argumento e à pretexto de que seriam destinados à comercialização, com o que se viabilizaria o pagamento de suas despesas ou o levantamento de fundos.
Permissa venia, o declarado propósito de comercializar os bens, objeto de garantia fiduciária, per si, evidencia, às escâncaras, que referidos bens não são empregados no processo produtivo da empresa.
De fato, o objeto de comercialização da empresa em recuperação judicial, no que se insere os bens de consumo que são por ela produzidos (milho, soja), não se confunde com os “bens de capital” (imóveis, maquinários, utensílios) necessário à produção daquele. É dizer: o resultado da produção, objeto de comercialização, não se confunde com os bens utilizados no processo produtivo (bens de capital).”
Ademais, essas mesmas premissas conceituais de bem de capital foram satisfatoriamente esclarecidas recentemente pela Terceira Turma do STJ no Resp n. 1.758.746 – GO, pelo mesmo ministro Marco Aurélio Bellizze, que salientou:
“De acordo com a parte final do § 3º do art. 49 da Lei n. 11.101/2005, afigura-se possível ao Juízo recuperacional, em atenção ao princípio da preservação da empresa, impor restrições temporárias ao proprietário fiduciário em relação a bem de capital que se revele indispensável à manutenção do desenvolvimento da atividade econômica exercida pela empresa recuperanda, bem como ao seu próprio soerguimento financeiro.
De seu teor extrai-se a compreensão de que, se determinado bem, alienado fiduciariamente, não puder ser classificado como “bem de capital”, ao Juízo da recuperação não é dado fazer nenhuma inferência quanto à sua essencialidade, pois o correlato credor fiduciário, além de não se submeter aos efeitos da recuperação judicial, não poderá ser impedido de vendê-lo ou de retirá-lo da posse da recuperanda, inclusive durante o stay period.O dispositivo legal em referência é expresso nesse sentido. (…) . Em não se tratando de bem de capital, o bem cedido ou alienado fiduciariamente não pode ficar retido na posse da empresa em recuperação judicial, afigurando-se, para esse efeito, absolutamente descabido qualquer juízo de essencialidade“.
Como se vê, a caracterização do bem, dado em garantia fiduciária, como “bem de capital”, constitui questão pressuposta ao subsequente juízo de essencialidade, a fim de mantê-lo na posse da empresa recuperanda.
(…) Extrai-se de seu teor que o bem, para se caracterizar como bem de capital, precisa ser utilizado no processo produtivo da empresa, já que necessário ao exercício da atividade econômica exercida pelo empresário. Verifica-se, ainda, que o bem, para tal categorização, há de se encontrar na posse da recuperanda, porquanto, como visto, utilizado em seu processo produtivo. Do contrário, aliás, afigurar-se-ia de todo impróprio — e na lei não há dizeres inúteis — falar em “retenção” ou “proibição de retirada”. Por fim, ainda para efeito de identificação do “bem de capital” referido no preceito legal, não se pode atribuir tal qualidade a um bem, cuja utilização signifique o próprio esvaziamento da garantia fiduciária. Isso porque, ao final do stay period, o bem deverá ser restituído ao proprietário, o credor fiduciário. A partir de tais constatações, para efeito de conceituação, perfilho integralmente a compreensão externada pela Ministra Isabel Gallotti, por ocasião do julgamento do CC 153.473/PR, com base em autorizada doutrina e em precedentes destacados do STJ (nos quais, pontualmente, se reconheceu estar-se diante de determinado bem de capital), de que “bem de capital” a que a lei se refere é o bem corpóreo (móvel ou imóvel), utilizado no processo produtivo da empresa recuperanda, e que, naturalmente, se encontre em sua posse.”
Enfatizando, a discussão acerca da não essencialidade do grão é algo que já parece ser muito pacífico na jurisprudência dos nossos tribunais.
Portanto, a novidade que emerge desse relevante julgado do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, é a possibilidade conferida ao instrumento de crédito, no caso a CPR, de transformar (ou “transmutar” na terminologia da CPR e do acórdão) o penhor em alienação fiduciária. O resto é mera consequência, já que o entendimento do STJ já está bem consolidado no sentido de que o grão não enquadra nesse conceito de bem de capital.
Corolário disso, a garantia representada pela safra (normalmente grão, mas podendo ser, também, outros produtos), convertida em Alienação Fiduciária por força da CPR, desponta-se como uma das mais seguras e efetivas a serviço do credor, principalmente pela agilidade que ela lhe confere caso seja necessária a execução dessa garantia.
Melquisedec José Roldão (2019)
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